8 de nov. de 2010

1 Paul McCartney em Porto Alegre = 55 mil sonhos

Acho que a melhor forma de começar a resenha de qualquer show é mandar logo aquela frase de impacto que melhor resuma o grande momento da apresentação. Geralmente é fácil: quando o tal momento acontece, o primeiro parágrafo da resenha já é desenhado na minha cabeça. Mas e quando essa lista de momentos é tão grande, mas tão grande, que fica difícil começar? Então, como iniciar algo sobre o show de Paul McCartney ontem, no Estádio Gigante da Beira-Rio, em Porto Alegre?

De várias formas. Que tal falar do início de tudo, com a trinca “Venus and Mars” / “Rock show” / “Jet”, igualzinho ao antológico álbum ao vivo “Wings over America” (1976)? Ou então a catarse geral de “All my loving”, primeira canção dos Beatles no roteiro – e terceira da apresentação? E o lado B “Nineteen hundred and eighty-five”, cantada pela plateia como se fosse aquele hit arrasa-quarteirão? “The long and winding road”, que gerou a maior chuva de lágrimas da noite, também seria um bom início para a resenha, não? E “My love”, que Paul dedicou à “sua gatinha Linda”? “Here today”, a linda homenagem a John Lennon? Hum, bom também... E o tributo a George Harrison com “Something”, um dos momentos mais mágicos da noite??

O parágrafo anterior acabou ficando longo demais. E, não, ainda não esgotei os momentos marcantes do show de ontem. Posso continuar? Então vamos lá... Que tal “A day in the life”, a música que tem o acorde final mais impactante da história da música pop – embora esse acorde, no show, tenha sido substituído por uma boa versão de “Give peace a chance”, em mais uma homenagem a Lennon? E o show de explosões e pirotecnia em “Live and let die”? Hum, Paul naquele pianinho colorido da “Magical mistery tour” tocando “Hey Jude”, com um coro de mais de 55 mil pessoas? E imagina só: lá no finalzinho, Paul McCartney ainda chamou duas meninas ao palco para autografar os seus braços. (A essa altura já estão com as tatuagens prontas.) E Paul soltando os demônios na pesadíssima versão de “Helter skelter”, hein? Ah, “Yesterday” que fez justificar os lenços brancos distribuídos pela produção antes de o show começar (“caso você chore”, alertavam as simpáticas mocinhas)? Tudo bem, alguns fãs vão dizer que o momento inesquecível do show foi Paul McCartney cantando “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (“We hope you have enjoyed the show”, claro que curtimos). E a derradeira música, “The end”, com aquela imagem do sol se pondo no telão ao fundo do palco??

Viu como é complicado começar uma resenha de um show do Paul McCartney? Pois é...

Algo que me chamou a atenção na apresentação de ontem foi o público. Certamente foi a plateia mais democrática e heterogênea que já vi. Espremido na grade, era possível ver um senhor com os seus sessenta e muitos anos de idade. Logo atrás, um pai (com os seus trinta e poucos) carregando o filho (de cinco anos) no colo. Senhoras, adolescentes, cinquentões, todos unidos ao redor de Paul McCartney. Cinquenta e cinco mil pessoas. Cinquenta e cinco mil sonhos. Afirmo, sem o menor pudor de ser piegas, que nunca vi, na minha vida, comoção igual em um show de música.

A apresentação, marcada para as 21h, iniciou com dez minutos de atraso. E, em duas horas e cinquenta minutos, Paul apresentou 39 músicas, de sua carreira solo e dos Beatles. O repertório já era bem conhecido. Fã que é fã já tinha pesquisado na internet - e sabia cantar todas as músicas de cor. O palco, que ficava em uma das extremidades do estádio, tinha um grande telão ao fundo, que transmitia, em geral, imagens psicodélicas e da plateia, bem como dois telões verticais em cada um de seus lados, imensos, de alta resolução, com as imagens do palco. Nada de passarelas ou de maiores frescuras.



O início com um trechinho de “Venus and Mars” e “Rockshow” pode até ser considerado frio – decerto, Paul já iniciou shows de turnês anteriores com músicas mais apropriadas –, mas quando os primeiros acordes de “Jet” soaram, deu para ter a certeza que, sim, Paul McCartney estava bem ali entre nós, diante de nossos olhos. O que se seguiu foi uma catarse, com momentos mágicos (“All my loving”, “The long and winding road”, a lúdica “Ob-la-di, ob-la-da”, com participação bacana do público), outros mais frios (“Letting go”, a mais recente “Highway”), e surpresas, como “And I love her”, “Drive my car” (que não são tocadas em todos os shows da turnê) e – surpresa das surpresas – uma versão solo, somente com Paul ao ukelelê, de “Ram on”, que havia sido apresentada pouquíssimas vezes nessa turnê.

Como acontece há algumas turnês, nessa “Up and coming tour”, Paul McCartney é acompanhado por uma banda enxuta, formada por Rusty Anderson na guitarra, Abe Laboriel Jr na bateria, Paul ‘Wix’ Wickens pilotando os teclados, e Brian Ray se revezando na guitarra e no baixo. A cada turnê que passa, Paul está, digamos, mais roqueiro. Comparando com o show de 1990 (primeira visita do ex-Beatle ao Brasil), as coisas, agora, estão bem diferentes. O som (que, graças a Deus, estrondou no Beira-Rio) estava pronto para estourar os tímpanos do pessoal localizado bem embaixo dos alto falantes da pista premium, em músicas como “Helter skelter”, a dobradinha “Let me roll it” e “Foxy lady”, de Jimi Hendrix (Abe Laboriel Jr deu um show a parte notadamente nesse momento), “Paperback writer” e “I’ve got a feeling”, que ganhou uma espécie de coda para Led Zeppelin nenhum botar defeito.



Além da boa música, o que fez Paul McCartney cair nas graças do público foi a sua extrema simpatia. Ele pareceu muito feliz durante o show. A sua ligação com o Brasil é forte. Em 1990, o seu primeiro concerto no Maracanã entrou para o Guiness. Às vezes, a gente é obrigado a esbarrar com um bando de artista marrento por aí. E Paul, que até poderia se dar ao luxo de ser besta, realmente se preocupa muito em agradar aos seus fãs. Poxa, imaginar ele chamar duas fãs em cima do palco para dar autógrafo? Ele ainda cantou “Happy birthday” para uma aniversariante na plateia, e, além disso, tudo o que pôde, falou em português, na maioria das vezes, repetindo as frases em busca de uma pronúncia razoável. E ele não ficou apenas no português, diga-se. Os gaúchos quase gozaram quando Paul apelou para o “gauchês”, em expressões como “bah”, “tchê”, “trilegal” e, até mesmo, um corinho de “ah, eu sou gaúcho”. Artistas mais novos (e os mais antigos também), favor, mirem-se no cara...

Uma das perguntas que mais me fazem é: “qual foi o show da sua vida”? Vou responder agora – e já peço perdão pela extensão da lista: Legião Urbana no Metropolitan, R.E.M. na Via Funchal, Oasis gravando o “Familiar to millions” em Wembley, Rolling Stones em seu primeiro show em um ginásio depois de 20 anos (“Bridges to Babylon”, no Madison Square Garden, em 1998), Chico Buarque e o seu “Paratodos”, Dave Matthews Band e quase quatro horas de som no Vivo Rio, os “Tambores de Minas” de Milton Nascimento, Neil Young no Rock in Rio 3, a “Fina estampa” de Caetano Veloso, Cássia Eller colocando mais antimonotonia no veneno de Cazuza, Robert Plant e Jimmy Page em algum Hollywood Rock da vida, Maria Bethânia e a delicadeza de “Brasileirinho”, Jeff Beck arrebentando a sua guitarra no Free Jazz de 1998, George Michael encerrando o Rock in Rio de 1991, João Gilberto e a bela homenagem a Dorival Caymmi no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, The Police fazendo sacudir (literalmente) as arquibancadas do Maracanã...

Todos esses, e mais alguns que a memória não conseguiu resgatar agora, foram os meus shows prediletos.

Ah, e o do Paul McCartney? Que me desculpem todos os outros, mas esse foi hors concours.



Setlist show Paul McCartney em Porto Alegre, 07/11/10:
1) “Venus and Mars” / “Rock show”
2) “Jet”
3) “All my loving”
4) “Letting go”
5) “Drive my car”
6) “Highway”
7) “Let me roll it”
8) “The long and winding road”
9) “Nineteen hundred and eighty-five”
10) “Let ‘em in”
11) “My love”
12) “I’ve just seen a face”
13) “And I love her”
14) “Blackbird”
15) “Here today”
16) “Dance tonight”
17) “Mrs Vandebilt”
18) “Eleanor Rigby”
19) “Ram on”
20) “Something”
21) “Sing the changes”
22) “Band on the run”
23) “Ob-la-di, ob-la-da”
24) “Back in the U.S.S.R.”
25) “I’ve got a feeling”
26) “Paperback writer”
27) “A day in the life” / “Give peace a chance”
28) “Let it be”
29) “Live and let die”
30) “Hey Jude”
31) “Day tripper”
32) “Lady Madonna”
33) “Get back”
34) “Yesterday”
35) “Helter skelter”
36) “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” / “The end”



Fotos: @gabisiciliano