Não bastaram os cinco anos sem um show de João Gilberto em São Paulo, e o público teve que esperar por mais uma hora e quarenta minutos além do horário para ouvir o primeiro acorde de “Aos Pés da Cruz”. Marcado inicialmente para as nove horas da noite, o palco de João Gilberto só começou a ser montado às 22h25. A equipe do técnico de som japonês Ken Kondo subiu ao palco e, em menos de quatro minutos, já estava tudo pronto: um tapete acústico, uma cadeira, um apoio para os pés, dois microfones e uma mesinha com uma garrafa d’água, um copo e uma toalha preta enrolada.
Às 22h30, a terceira companhia soou no Auditório Ibirapuera e o telão com o anúncio da companhia de telefone patrocinadora da casa desceu. Dois minutos depois, o historiador musical (e curador do projeto dos 50 anos de Bossa Nova) Zuza Homem de Mello subiu ao palco para lembrar que fazia 50 anos e 35 dias que João Gilberto tinha gravado “Chega de Saudade” nos estúdios da Odeon, bem como agradecer ao Banco patrocinador do projeto. Aí sim, às 22h35, João Gilberto (“o nosso artista maior”, nas palavras de Zuza) é finalmente anunciado. Segurando o braço do violão, ele entra timidamente no palco e sussurra: “Desculpe o atraso. Não costumo atrasar, mas cheguei ontem de Nova York e atrasei. Desculpem-me”.
A primeira canção do roteiro foi “Aos Pés da Cruz”. Tudo normal, o som muito bom, somente atrapalhado pelos cliques das máquinas de fotografia dos profissionais que cobriam o show. Até que aquele famoso barulhinho que é ouvido quando desligamos nossos computadores estronda nos alto-falantes. O público fica tenso, mas João (parece que) nem reparou. A canção seguinte é uma surpresa. Inédita na voz de João, “13 de Ouro”, de Herivelto Martins e Marino Pinto, deu um gostinho na platéia do tipo ‘bem que poderia sair o CD desse show...’.
“Wave” e “Caminhos Cruzados”, duas pérolas absolutas de Tom Jobim, deram continuidade ao show, para, em seguida, João falar confusamente e agradecer a Henry Maksoud, dono da famosa cadeia de hotéis. A varanda do hotel foi tão elogiada que João parou de falar e começou a bater palmas. Após, disse que somente o progresso é capaz de fazer com que coisas como essa varanda sejam construídas. Ninguém na platéia entendeu direito, mas omo era João falando, muita gente aplaudiu.
Três canções que sempre estão presentes nos shows do violonista baiano deram continuidade ao show: “Doralice”, “Meditação” e “Preconceito”. Em seguida, uma surpresa efusivamente aplaudida. “Disse Alguém”, versão que Haroldo Barbosa fez para “All Of Me” (Seymour Simons e Gerald Marks), raramente é apresentada ao vivo por João e, realmente foi um momento mágico do concerto.
Com a platéia na mão, João emendou “O Pato”. Impressionante notar como absolutamente todas as versões de João Gilberto (seja a de estúdio, as inúmeras ao vivo, ou as apresentadas em seus shows) para essa música são diferentes. Uma canção aparentemente simples e que é sempre desconstruída por João, seja na mudança do andamento musical, seja na mudança da entonação de alguma sílaba da letra. Coisas que só mesmo um gênio é capaz de fazer.
Em seguida, Tom Jobim é relembrado novamente em “Corcovado”, “Samba do Avião” (com a palavra “aterrar” substituída por “chegar”, como já havia sido feito no show do Carnegie Hall, em Nova York, em junho passado) e “Ligia” (que teve, mais uma vez, o seu nome excluído da letra da canção). Nessa música, que talvez tenha sido a mais aplaudida da noite, era visível a alegria de João Gilberto ao tocá-la. A dramaticidade da letra transformou-se em alegria e, em alguns momentos, era possível notar João Gilberto dando um sorriso maroto.
Mas se o maestro Jobim teve seu espaço no show, João também não deixou de pagar tributo a outro de seus grandes mestres. Dorival Caymmi foi lembrado com mais dois clássicos de seu repertório, “Você Já Foi à Bahia?” (outro momento da noite que pôde ser chamado de mágico) e “Rosa Morena”. E, claro, Ary Barroso também foi lembrado, com a sua brilhante “Morena Boca de Ouro”, em uma versão curtíssima.
Aliás, curioso notar que, diferentemente dos shows que fazia no início dessa década, João primou pela economia. Quem teve a oportunidade de assistir ao concerto que ele fez em São Paulo no extinto Tom Brasil da Vila Olímpia, no ano 2000 – durante o qual ele repetia incansavelmente as letras das canções –, com certeza se lembra da versão de 12 minutos de duração para “Saudosa Maloca”. Ou então de “Bolinha de Papel”, que tinha a sua letra repetida, no mínimo, seis vezes. Mas, dessa vez, as canções não duraram mais do que dois minutos e meio. João limitou-se a cantar somente uma vez a letra de cada música.
“Desafinado”, no entanto, foi uma exceção. João Gilberto repetiu a sua letra duas vezes. E o público não se importaria se ele a repetisse quinze vezes, sempre em busca da versão perfeita. A italiana “Estate” deu continuidade ao show, sendo certo que esta foi a única canção do roteiro cantada em língua estrangeira. “Não Vou Pra Casa” foi a deixa para que o público notasse que o espetáculo estava chegando ao fim. E, após “Chega de Saudade” e “Isso Aqui o Que É”, João se levantou com o seu violão e foi embora.
Foram 20 canções em 57 minutos de show. Lógico que, no caso de João, o tempo não tem importância, mas o público queria mais. E menos de um minuto depois, João retornou ao palco. O bis fez relembrar os antológicos shows da turnê “Paratodos”, de Chico Buarque, quando ninguém sabia a que horas ia para casa.
Pensando bem, o bis de João Gilberto nem pode ser chamado de bis. Foram nove canções em mais 30 minutos de show. Praticamente um novo show... E a primeira apresentada é logo uma surpresa. “Chove Lá Fora” é uma verdadeira raridade na voz de João Gilberto. E a canção ainda foi repetida após o elogio de João ao seu autor Tito Madi. Em seguida, foi a vez de o baiano rasgar seda para outro compositor. Sérgio Ricardo (chamado por João de ‘anjo’) foi lembrado com “O Nosso Olhar”, outra que, provavelmente, João nunca tinha cantado em público (favor me corrijam se eu estiver errado).
Outro amigo de João foi homenageado em seguida. A frase “Denis Brean, meu amigo que já foi pro céu” foi a introdução de “Bahia com H”, uma das músicas mais bonitas do cancioneiro brasileiro (“Ah! Já disse um poeta / Que terra mais linda não há / Isso é velho e do tempo que a gente escrevia Bahía com H”). Nesse momento, João falou que conheceu Brean nos estúdios da TV Excelsior. Foi correndo até ele e disse que achava linda a música. A resposta foi curta e grossa: “Nunca fui à Bahia”. João Gilberto falou no show que Brean tinha medo de viajar. Canção devidamente repetida após os comentários e João Gilberto finalizou enfático: “Denis Brean é paulista de Campinas”.
Muito falante, João continuou o papo com a platéia e, dessa vez, resolveu elogiar o seu médico de voz. “Quando se perde a voz, o problema não é só cantar. A gente não consegue nem fazer ‘hum’. Se perguntarem se o filme foi bom, não dá para responder ‘hum hum’”. Risos da platéia e João emenda com outro clássico de seu repertório. “Da Cor do Pecado” foi composta por Bororó, mas, na verdade, já foi devidamente apropriada por João há décadas. E Bororó certamente está orgulhoso.
“Retrato Em Branco e Preto” e “Samba de Uma Nota Só” relembraram Tom Jobim mais uma vez, e “Guacyra”, com a sua letra falando em despedida (“Eu vou-me embora / Mas eu volto outro dia / Virgem Maria / Tudo há de permitir / E se ele não quiser / Eu vou morrer cheio de fé”) fez o público imaginar que seria o fecho de ouro do espetáculo. Mas João ainda pescou mais outra preciosidade do fundo de seu baú. “Pra Machucar Meu Coração” foi outro momento marcante da noite, e o encerramento com “Garota de Ipanema” fez todo mundo do Auditório Ibirapuera imaginar que aquilo que estava acontecendo era apenas uma sonho.
E era sonho de verdade.
Abaixo, o roteiro do primeiro show de João Gilberto em São Paulo:
1) "Aos Pés da Cruz"
2) "13 de Ouro"
3) "Wave"
4) "Caminhos Cruzados"
5) "Doralice"
6) "Meditação"
7) "Preconceito"
8) "Disse Alguém"
9) "O Pato"
10) "Corcovado"
11) "Samba do Avião"
12) "Lígia"
13) "Você Já Foi à Bahia"
14) "Rosa Morena"
15) "Morena Boca de Ouro"
16) "Desafinado"
17) "Estate"
18) "Não Vou pra Casa"
19) "Chega de Saudade"
20) “Isso Aqui o que É"
21) "Chove Lá Fora"
22) "O Nosso Olhar"
23) "Bahia com H"
24) "Da Cor do Pecado"
25) "Retrato em Branco e Preto"
26) "Samba de uma Nota Só"
27) "Guacyra"
28) "Pra Machucar Meu Coração"
29) "Garota de Ipanema"
Cotação: *****
Mais informações:
Resenha do show de Nova York
Resenha do segundo show em São Paulo
15 de ago. de 2008
SHOW: JOÃO GILBERTO NO AUDITÓRIO IBIRAPUERA – SÃO PAULO – 14/08/08 (1° SHOW)
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João Gilberto
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2 comentários:
Ahn, que inveja!
Queria muito ter ido, imagino que tenha sido ótimo, mas tava difícil conseguir um ingresso...
Nossa, como eu gostaria de estar presente nesse momento histórico.. que Deus me conceda ainda esta graça.. amo JG
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