3 de mai. de 2008

BANQUETE MARÍTIMO

Qualquer novo trabalho de Adriana Calcanhotto merece atenção redobrada do ouvinte. Seus discos são (um pouco) mais difíceis do que a média e (bastante) superiores aos lançados no cada vez mais pobre mercado fonográfico brasileiro. Assim, se o ouvinte não tiver paciência, à primeira escutada, pode jogar o CD no fundo do armário e nunca mais escutá-lo.

Com “Maré”, lançado agora pela Sony/BMG, a história não é diferente. Conforme já demonstrou em grandes discos como “Maritmo” (1998) e “Cantada” (2002), Calcanhotto não conquista o ouvinte de primeira. É preciso escutar o disco cada vez mais, até as canções se tornarem íntimas. E quando o ouvinte chega a esse estágio, descobre porque Adriana Calcanhotto é – fácil – uma das grandes artistas do Brasil, na atualidade.

O seu novo disco, na verdade, é um banquete. Tipo aqueles que são servidos em restaurantes, com vários pratos diferentes e apresentados em pequeníssimas e refinadas porções. Aliás, ainda que inconscientemente, talvez a chef Roberta Sudbrack – responsável pelo “catering” da cantora durante a gravação do disco – tenha sido uma enorme influência para a compositora gaúcha. Assim como a comida de Sudbrack, as canções de “Maré” seguem um verdadeiro ritual de uma saborosa degustação, que começa com o amuse bouche bossa-novístico da faixa-título “Maré” até culminar nos sofisticados queijos franceses de um “Sargaço Mar” do fundo da alma de Dorival Caymmi.

Conforme Calcanhotto explicou, “Maré” é o segundo disco de uma trilogia que foi iniciada com “Maritmo”. A letra, da lavra da própria cantora, dá uma pista da continuação: “Mais uma vez / Vem o mar / Se dar / Como imagem”. O CD prossegue com a bela “Seu Pensamento” (parceria com o sempre competente Dé Palmeira) e que segue a mesma linha da anterior, com um arranjo delicado e a voz sempre agradável de Adriana Calcanhotto.

Nesse novo trabalho, a compositora gaúcha se deu ao luxo de recriar canções de terceiros. Algumas escolhas funcionaram bem, outras nem tanto, que é o caso de “Três”. Apesar de ser uma boa composição dos irmãos Marina Lima e Antonio Cícero, Calcanhotto não encontra o tom perfeito para a sua interpretação. E, assim, fica impossível, não vir à mente a gravação original imbatível de sua autora, no disco “Lá Nos Primórdios” (2006). Por outro lado, “Porto Alegre (Nos Braços de Calipso)”, de Péricles Cavalcanti, com seu delicioso arranjo, é um dos pontos altos de “Maré”. E ainda conta com os luxuosos e discretos backing vocals de Marisa Monte. Em suma, seria a lagosta do banquete, acompanhada por um risoto de açafrão...

Em seguida, “Mulher Sem Razão”, parceria de Cazuza, Bebel Gilberto e Dé Palmeira, e que fez parte do testamento-musical do poeta carioca, “Burguesia” (1989). A canção que acabou perdida na obra de Cazuza, renasce na voz de Calcanhotto, e tem tudo para ser o grande sucesso de “Maré”. A sua letra rascante (“Saia dessa vida de migalhas / Desses homens que te tratam / Como um vento que passou / Caia na realidade, fada / Olha bem na minha cara / E confessa que gostou”), no melhor estilo “cinco horas da manhã no Baixo Leblon”, seria uma espécie de sobert de limão (o mais cítrico que existir) antes de se iniciar a segunda parte da refeição.

E esse segundo tempo é um pouco menos assimilável. A partir da sexta faixa, “Teu Nome Mais Secreto” – que, sozinha, já vale o disco inteiro –, podemos dizer que a leve carne dos frutos do mar é trocada por algo mais pesado. O magret de canard – que a Roberta Sudbrack me perdoe por esse banquete tão estúpido!! – com o auxílio luxuoso do violão de Jards Macalé, foi frito por ninguém menos que Waly Salomão (de quem mais poderia ser versos como “Só meu sangue sabe tua seiva e senha / E irriga as margens cegas / De tuas elétricas ribeiras / Sendas de tuas grutas ignotas”?), a quem, aliás, o CD é dedicado.

“Sem Saída” é uma poesia do concretista Augusto de Campos musicada por seu filho, Cid Campos. A curta (e densa) letra é carne bem pesada (“A Estrada é muito comprida / O caminho é sem saída / Curvas enganam o olhar”) e merece algo mais leve em seguida para uma boa digestão. E é o que ocorre com as duas próximas canções. “Para Lá” é uma boa música de Calcanhotto com letra de Arnaldo Antunes. A discreta guitarra de Arto Lindsay (que produziu o disco juntamente com a compositora gaúcha) dá um molho todo especial à canção. E “Um Dia Desses” representa um lado mais lúdico de Calcanhotto – ou não seria Partimpim?. A letra simples e delicada de Torquato Neto e musicada por Kassin é doce como um souflé de chocolate: “Um dia desses eu me caso com você / Você vai ver ai, ai, você vai ver / Um dia desses, de manhã, com padre e pompa / Você vai ver como eu me caso com você”.

O grand finale com “Onde Andarás” é puro luxo, com a linda poesia de Ferreira Goulart musicada por Caetano Veloso. E “Sargaço Mar”... Bom, “Sargaço Mar”... Dorival Caymmi... E somente com o violão de Gilberto Gil... Não precisa de maiores comentários... E nem do cafezinho.

Cotação: ****

2 comentários:

Anônimo disse...

Não achei esse disco tudo isso não. Pra ser sincero, achei até um pouco cansativo. Mas quero ver o show.

Anônimo disse...

O texto ficou muitíssimo bom e interessante. Quanto ao Cd, achei lindo e confesso que à primeira ouvida, diversamento do que foi dito no texto. Não considero a faixa 4 como o ponto alto do disco. Ao contrário, achei-a meio caretinha diante das outras. Não conheço a gravação do tango com a própria Marina. Vou procurar. Mas achei que ficou excelente no tom da Adriana.
Adorei as faixas 1, 2, 3 e 5. A do Cazuza ficou maravilhosa e tem a cara da Calcanhotto.
Enfim, quando se trata dela, sou suspeito pra falar, tamanha minha paixão por essa mulher.
Grande abraço e parabéns pelo blog
Dener Serafim Mattar - Passos-MG
dsmattar@uol.com.br