A Livraria Cultura e o pesquisador musical (e ex-baterista dos Titãs) Charles Gavin se juntaram para uma missão louvável: relançar dez álbuns importantes e raros, sendo oito de música brasileira. Eu digo que a missão é louvável porque, com o mercado fonográfico cada dia mais atrofiado, é muito bom ter uma pessoa (e, principalmente, uma grande empresa) que se preocupe em resgatar discos raros. Alguns já haviam sido lançados em CD, mas estavam fora de catálogo havia séculos. No total, foram dez títulos lançados: “A peleja do diabo com o homem do sol” (Zé Ramalho), “Som sangue e raça” (Dom Salvador e Abolição), “À vontade mesmo” (Raul de Souza), “What’s new” (Sonny Rollins), “Bossa Nova USA” (The Dave Brubeck Quartet), além dos cinco títulos resenhados abaixo. Eu escolhi os cinco mais interessantes (na minha opinião, claro), para falar um pouquinho mais. Não faço jabá aqui para as pessoas comprarem discos. Eu que compro sempre os álbuns resenhados nesse blog. Só escrevo sobre o que gosto, graças a Deus. E vou repetir que a iniciativa do Charles Gavin e da Livraria Cultura foi louvável. Espero que permaneça firme e forte.
“Os Ipanemas” – Os IpanemasVou começar por “Os Ipanemas”, para mim, o álbum mais interessante desse pacote. O quinteto tinha em sua formação Astor Silva, Wilson das Neves, Néco, Rubens Bassini e Marinho. Eles lançaram esse único álbum, em 1964, e que se transformou em uma verdadeira raridade. Explico: à época, a gravadora CBS achou a sonoridade do quinteto muito prafrentex, e acabou vetando o seu lançamento. Só que algumas pouquíssimas cópias já tinham sido liberadas para determinadas lojas. Em resumo: quem viu e comprou, se deu bem. Quem deu mole, deve se arrepender até hoje. Seja pelo fato de ter perdido a oportunidade de ter um excelente álbum ou por ter perdido a chance de ganhar algumas centenas de dólares no ebay. O que eu mais gostei n'Os Ipanemas é que eles faziam um som diferente de tudo o que já ouvi de samba-jazz. Na verdade, eles iam além do estilo que misturava samba, jazz, gafieira e bossa nova, incorporando elementos afro-cubanos, com a adição de um berimbau (presente em quase todas as faixas) tocado pelo grande Wilson das Neves. O repertório mistura clássicos da MPB, como “Garota de Ipanema” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), “Consolação” (Baden Powell e Vinicius) e “Nanã” (Moacir Santos e Mario Telles) à composições dos próprios integrantes do grupo, como “Java” e “Zulu’s” (ambas de Astor Silva e Néco).
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“É samba novo” – Edison Machado
O meu álbum predileto do pacote é “Os Ipanemas”. Mas o grande clássico, acho que ninguém tem dúvidas. E ele atende pelo nome de “É samba novo”, de Edison Machado, um ex-cabo do exército que trocou as armas de verdade para se transformar na maior metralhadora giratória da bateria no Brasil. No bom sentido, claro. Edison Machado foi o inventor do “samba no prato”. E ele surgiu no Beco das Garrafas, no início dos anos 60, tocando no Bossa Três, ao lado do pianista Luiz Carlos Vinhas e do baixista Tião Netto. “É samba novo” foi o seu primeiro álbum solo. Solo?? Certamente não. Olha só o time de feras que acompanhou o baterista na gravação: Moacir Santos, J. T. Meirelles, Paulo Moura, Maciel, Raul de Souza, Pedro Paulo, Tenório Jr. e Tião Netto. Pouco bom, né? Nas 11 faixas do disco, uma mistura de bossa-nova, jazz, gafieira e algumas outras coisas que ainda não descobri. As suas versões de “Nanã” (Moacir Santos e Mario Telles) e “Quintessência” (J.T. Meirelles) são absolutamente marcantes. E, para mim, a capa de “É samba novo” é uma das mais sensacionais da MPB. No ano passado, publiquei um texto no SRZD falando um pouco mais sobre esse álbum. Caso você tenha interesse, é só clicar aqui. Ah, e quer saber o que é samba no prato? Como escreveu Charles Gavin no encarte do CD, “ouça e redescubra o porquê”. Ou descubra, se for o caso.
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“Karma” – Karma
Em uma aula básica sobre o rock brasileiro, você vai aprender que o primeiro rock gravado no Brasil foi “Rock around the clock”, de Bill Haley & His Comets, por Nora Ney, em 1955. Dois anos depois, Cauby Peixoto gravou o primeiro rock original em português (“Rock and roll em Copacabana”, de Miguel Gustavo). Aí, veio a Jovem Guarda, Tropicália, Raul Seixas e a explosão do BRock, certo? Certo. Mas, antes do BRock explodir nos anos 80, há uma fase um pouco obscura na história do rock brasileiro. Ela está situada, mais ou menos, no início dos anos 70, quando surgiram por aqui bandas influenciadas pelo rock progressivo britânico. As mais famosas foram O Terço, Mutantes (que, no pós-Tropicália, acabou virando progressivo) e Karma, que era formada Jorge Amiden (egresso d’O Terço), Alen Terra e Luiz Junior. O som, com ênfase na tritarra (guitarra com três braços) de Amiden misturava o progressivo com o folk. O álbum ora relançado marcou a estreia e a dissolução da banda. “Karma”, gravado em 1972, com arranjos de Arthur Verocai, foi o único registro dessa banda, que acabou se dissolvendo após a turnê de lançamento do disco. Uma pena. Pelo menos, agora temos o CD para preencher essa lacuna na história do rock brasileiro.
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“Embalo Trio” – Embalo Trio
Entre as bandas de música instrumental brasileira surgidas nos anos 60, e que tiveram carreira curta, encontra-se o Embalo Trio. Mas por que tanto trio surgiu e desapareceu nos anos 60? Certamente, o fenômeno foi bem parecido com as diversas bandas que surgiram e duraram pouco na época do Rock Brasil dos anos 80. Charles Gavin explica melhor: “Essa fase extraordinária da música brasileira possibilitou a contratação de inúmeros trios, quartetos e quintetos – fato que resultou na produção de excelentes álbuns de música instrumental. Porém, a maioria desses grupos gravou apenas um disco e depois desapareceu do mapa”. E esse foi o caso do Embalo Trio, que gravou um único álbum em 1965, e depois sumiu. Formado por Mancilha (pianista de 16 anos à época da gravação), Faud (baterista, 17 anos) e Carioca (o baixista, “velhinho” de 19 anos, como diz o texto original de apresentação do álbum, assinado por Ramalho Neto), o Embalo Trio seguiu a típica receita da época, ao gravar diversas canções de Tom Jobim, Carlos Lyra e Baden Powell. A diferença é que o Embalo Trio já enxergava a genialidade do (também) jovem Edu Lobo, que teve cinco músicas gravadas (metade do álbum), incluindo uma versão bem interessante de “Canção da terra”. Luiz Carlos Sá, que surgiu exatamente em 1965, ano de lançamento desse álbum, e que mais tarde formaria um trio com Guarabyra e Zé Rodrix, por sua vez, foi lembrado com “Giramundo”, faixa de encerramento do álbum. Embora não tenha a consistência de outros conjuntos como Os Ipanemas, Bossa Três, Rio 65 Trio, entre outros, vale a pena conhecer o som do Embalo Trio.
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“Vela aberta” – Walter Franco
Um dos álbuns que mais ouvi na minha infância foi “A arca de Noé” (1980), com canções compostas por Vinicius de Moraes e Toquinho, e interpretadas pela nata da Música Popular Brasileira. E a música que eu mais gostava era “O relógio”. O seu intérprete era um cara chamado Walter Franco. Muitos anos depois, fui conhecer a obra dele, um tanto polêmica, experimental, maldita, mas extremamente original. Isso ficou claro em seu álbum de estreia (“Ou não”, de 1973) e nos dois seguintes. Aí, em 1979, com o sucesso (ou não...) da música “Canalha” no Festival da Canção da TV Tupi, Walter Franco entrou em estúdio para deixar a sua sonoridade mais palatável e acessível. E, dessa experiência, saiu “Vela aberta”, álbum ora relançado, e que conta com grandes músicos no acompanhamento, como o baixista Pedro Ivo e o guitarrista Sérgio Hinds. A pesadíssima “Canalha” acabou entrando no álbum, assim como mais dez composições próprias de Walter Franco, dentre as quais se destacam a viajante e soturna “Tire os pés do chão” (não, nada a ver com Ivete Sangalo, por favor) e “Me deixe mudo”, esta última, uma crítica à censura imposta pela ditadura militar, e que já havia sido gravada por Chico Buarque (no álbum “Sinal fechado”, de 1974), e pelo próprio Walter Franco, em seu clássico “Revolver”, de 1975.
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Em seguida, você pode escutar a faixa “Kenya” (Astor Silva / Rubens Bassini), uma das preciosidades de “Os Ipanemas”.